quinta-feira, 27 de outubro de 2022

1279 - De mongolismo a síndrome de Down

À primeira vista, é impossível deduzir da história dos mongóis qualquer justificativo da sua associação à síndrome de Down. Mas tanto em português (mongol, mongoloide*), como em inglês (mongol, mongoloid), em espanhol (mongólico) ou francês (mongole), os significados sobrepõem-se. De onde partiu então tal fusão, e o que fez com que o seu sentido permanecesse até os nossos dias?
Para responder estas questões, é necessário explorar a história da trissomia 21, que se inicia em 1860. Enquanto trabalhava no asilo de Royal Easlwood, na Grã-Bretanha, o doutor John Langdon Down começou a classificar os doentes psiquiátricos, então referidos como "idiotas", baseando-se nos trabalhos de Johann Blumenbach, que dividia a espécie humana em 5 raças (Astecas, Caucasianos, Malaios, Etíopes e Mongóis) de acordo com a descrição e proporções do crânio e face. Notou assim que um grupo tinha uma aparência característica e similar entre todos os indivíduos, e, utilizando um dos pacientes como modelo, escreveu em sua publicação "Observations on an ethnic classification of idiots": um grande número de idiotas congênitos são mongóis típicos. [...]
Na continuidade do seu legado, o seu filho, Reginald Down, era da opinião que a síndrome "devia ser uma regressão para um tipo ainda mais retrógrado que a raça mongol, de onde alguns etnologistas acreditam que todas as raças humanas se originaram". Esta declaração foi citada por Francis Graham Crookshank, epidemiologista britânico, em seu livro "The Mongol in Our Midst". O livro, considerado posteriormente "racismo científico", defendia que a "imbecilidade mongoloide", como chamou à síndrome, era um atavismo retrógrado para a raça mongol, que considerava mais primitiva. Como consequência, os “imbecis mongóis” eram uma raça à parte, diferentes dos outros homens e mulheres. Como argumentos da sua tese, Crookshank apresentou exemplos das características físicas e comportamentais supostamente partilhadas entre os "imbecis" e o povo mongol. No início do século XX, "mongolismo" tinha sido largamente adoptado como descritivo da trissomia 21.
Cariótipo de doente com síndrome de Down

Foi apenas em 1959, após Jérôme Lejeune descobrir uma cópia extra do cromossoma 21 no cariótipo dos portadores, que começou a ser sugerido o uso de um termo diferente de "mongoloide" ou "mongol". Geneticistas prestigiados, incluindo o próprio neto de John Down, Norman L. Down, elaboraram uma carta conjunta ao jornal médico The Lancet, insistindo que o termo era derrogatório para as etnias orientais, e apelando a um consenso sobre uma nova nomenclatura para a condição.
Também a Mongólia se envolveu nos pedidos de retificação. Depois de se tornar membro das Nações Unidas em 1961, juntou-se à Organização Mundial de Saúde em 1965, e requereu a redesignação do termo "mongoloide". A partir daí, a condição passou a ser oficialmente chamada síndrome de Down. É mais fácil compreender o prejuízo que esta associação de conceitos traz para mongóis e portadores da síndrome após conhecer a sua origem. Pessoas com a síndrome e mongóis, de igual modo, são rebaixados a uma categoria inferior, menos evoluída, a um erro de Darwin. [...]
Extraído de: Mongólia e os mongolóides, por Margarida Vieira Lisboa. Revista Frontal.
N. do E. 
* A grafia "mongolóide" foi alterada para "mongoloide" pelo Acordo Ortográfico de 1990.

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