quinta-feira, 23 de maio de 2019

1098 - As primeiras práticas cirúrgicas em lesões por armas de fogo

A descoberta da pólvora tem sido consensualmente aceita na comunidade científica como originária da China no século IX. Descoberta pelos alquimistas chineses na busca do elixir da imortalidade, a pólvora resultou de séculos de experimentação. A palavra chinesa para "pólvora" significa "fogo da Medicina", estando a primeira referência às propriedades incendiárias da pólvora descrita num texto "taoista" (真元妙道要略) de meados do século IX: "... aquecidos juntos, enxofre, realgar (derivado do ácido sulfúrico) e salitre com mel originaram chamas e fumo, de tal forma que as suas mãos e rostos foram queimados, e até mesmo toda a casa ardeu." (Fig. 1).
Quando os ingleses utilizaram pela primeira vez as armas de fogo (1346), na batalha de Créçy, Guy de Chauliac, ital. Guido De Cauliaco (1298-1368), foi um dos primeiros autores que fez anotações sobre o tratamento deste tipo de lesões.
Escreveu em 1363 a sua grande obra Chirurgia magna (titulo original: Inventorium sive collectorium in parte chirurgiciali medicin) considerado até ao século XVI o grande livro, e referência da cirurgia do seu tempo. No seu livro Chauliac seleccionou e compilou de todos os seus antecessores as técnicas e as práticas cirúrgicas consideradas mais importantes e de maior referência à época, comentando e acrescentando pormenores da sua prática clínica e experiência cirúrgica. Neste incluem-se textos de Galeno, Hipócrates, Aristóteles, Razi (Rhazes), Abul Kasim (Albucasis), Avicenna (Ibn Sina), entre outros autores.
Sobre este livro, Ambroise Paré afirmou: "Guy de Chuliac escreveu um livro imortal que estará sempre ligado ao destino e aprendizagem da escola cirúrgica francesa da sua época".
As feridas causadas por armas de fogo levantaram inicialmente grandes problemas aos cirurgiões militares, por se entender que os projéteis disparados causavam três efeitos distintos no corpo do ferido e que cada um deles necessitava de tratamento próprio. O projétil provocava uma ferida contusa, o efeito da explosão provocava uma queimadura e a pólvora provocava envenenamento. A grande destruição dos tecidos fornecia consequentemente um ótimo meio de crescimento bacteriano e os cirurgiões depararam-se com um novo tipo de ferida e gangrena desconhecidos.
Depois de Guy de Chauliac, Giovanni de Vigo (1450-1525), médico italiano, escreveu sobre o tratamento de ferimentos por arma de fogo, e defendia que todas as feridas por arma de fogo descritas pelo próprio como "contusas e queimadas", não necessitavam de cauterização com ferro em brasa mas sim azeite a ferver para combater a ação tóxica da pólvora, uma vez que era esta a razão principal da evolução catastrófica das feridas por arma de fogo; "as propriedades venenosas e tóxicas da pólvora".
Em seu grande livro, "Practica Copiosa in Arte Chirurgie", reúne uma serie de autores gregos e árabes, e caracteriza e descreve os ferimentos por arma de fogo afirmando que teriam de ser tratados com óleo a ferver ao invés de cauterizados com ferro em brasa. O prestígio de Vigo no meio médico europeu pode ser avaliado pelo facto de sua obra "Practica in chirurgia", publicada em 1514, ter alcançado 30 edições.
Este tipo de pensamento arrastou-se durante muito tempo até que um cirurgião mais atento, Bartolomeo Maggi (1477-1552), cirurgião militar e professor da Universidade de Bolonha, resolveu investigar e verificar que nada se passava assim. Disparou balas de arcabuzes sobre pólvora, enxofre e fatos de soldados e verificou que a bala não fazia arder nenhum destes elementos, o que facilmente comprovava que estas, por si só, não provocavam queimaduras. Verificou também que a ingestão de pólvora ou dos seus componentes não provocava qualquer envenenamento, acabando de vez com a ideia antiga de que a pólvora tinha esse efeito.
Extraído de: "As Primeiras Lesões por Armas de Fogo – novo paradigma para o cirurgião militar – Ambroise Paré"
Autores: Miguel Onofre Domingues e Madalena Esperança Pina
Rev. Port. Cir. no.23 Lisboa dez. 2012
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1646-69182012000400013
A seguir: Ambroise Paré (1510-1590) – O cirurgião militar

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